Histórias & Poder
Stories matter. Many stories matter. Stories have been used to dispossess and to malign, but stories can also be used to empower and to humanize. Stories can break the dignity of a people, but stories can also repair that broken dignity.
(Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para desapropriar e tornar maligno, mas histórias também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.)
— Chimamanda Ngozi Adichie
Lá em 2010, durante uma aula nos Estados Unidos, uma professora norte-americana mencionou o Brasil e, sem contexto nem fundamento algum, afirmou categoricamente que aqui, na época do carnaval, todas as mulheres andam pelas ruas completamente sem roupa. Sem exagero, foi exatamente isso o que ela falou. E naquela sala com mais de 30 pessoas, eu e a única outra aluna brasileira nos entreolhamos, o entendimento implícito de que aquilo era um absurdo sem tamanho, mas as duas sem coragem (ou talvez só com preguiça?) de contestar.
Esse episódio me veio à mente alguns anos depois, também numa sala de aula, mas dessa vez no Mestrado que fiz na UEL. A professora (Márcia Buzalaf, maravilhosa) nos mostrou um TED Talk da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, O perigo da história única (é imperdível, assistam!).
O estereótipo de que o Brasil se resume a carnaval e futebol, ilustrado pelo comentário da minha professora lá nos EUA, é um exemplo do que Adichie apresenta em sua palestra - os perigos de termos uma visão tão estreita em relação a determinados povos. Países ou continentes com um histórico de dominar e colonizar os outros, como os EUA e a Europa, são aqueles sobre os quais conhecemos histórias diversas e plurais, a partir de diferentes mídias, já que são eles mesmos que produzem a maior parte do entretenimento, da cultura e da informação que o restante do mundo consome.
No entanto, quando pensamos sobre os países da África, por exemplo, a perspectiva é basicamente a mesma: pobreza, AIDS, fome. Oriente Médio? Terrorismo, extremismo religioso, guerra. Nosso repertório é extremamente limitado e o que conhecemos sobre esses povos é aquilo que é relatado pela lente dos próprios ocidentais. Contar a história de um povo é também uma forma de exercer poder sobre esse povo. O que entra e o que fica de fora é determinando pelo narrador. Então o vídeo de Chimamanda Adichie é um convite pra repensarmos o que consumimos e como isso molda nossa forma de ver “o outro”; mas é também um lembrete de que devemos nos apropriar das nossas próprias histórias, coletivas ou individuais.
Virginia Woolf disse que uma feminista é qualquer mulher que diz a verdade sobre a sua vida. Genial ♡. Na sociedade patriarcal em que vivemos, a prática de dividir histórias com outras mulheres passou a ser chamada de gossip, como explicado nesse vídeo divertido aqui, que minha aluna (hey, Maira!) compartilhou comigo há umas semanas pra gente discutir na aula. A apresentadora fala sobre a origem desse termo - que hoje em dia significa fofoca/fofocar, mas que passou a ter essa conotação negativa somente no período da caça às bruxas (Silvia Federici também cita isso em Calibã e a Bruxa, livro brilhante que explica como a origem do capitalismo se deu juntamente com essa perseguição às mulheres, numa tentativa de destruir qualquer avanço ou conhecimento feminino). Antes, o termo que deu origem a gossip era usado pra descrever uma pessoa muito próxima a você, com quem você podia dividir tudo.
A escritora francesa Annie Ernaux é reconhecida pelo compromisso em relatar suas vivências, em especial as mais doloridas e traumáticas, como nos livros autobiográficos O acontecimento, em que descreve o aborto ilegal que realizou na juventude, e A vergonha, sobre uma situação horrenda de violência doméstica que presenciou na infância. Para ela, Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo.
Que tenhamos coragem de tomar pra nós a narrativa da nossa própria história, como essas três mulheres imensas, Ernaux, Woolf e Adichie. E aqui faço questão de me referir a elas pelo sobrenome, porque, como bem pontuou Ernaux, muitos críticos insistem em chamá-la sempre pelo primeiro nome, o que não fazem com autores homens, numa tentativa constante de descredibilizá-la. Porque o patriarcado não se sustenta apenas pelas coisas grandes e graves (como o controle dos direitos reprodutivos das mulheres, que impactou diretamente Ernaux), mas também por meio desses minúsculos detalhes que, somados, alimentam o ciclo de deslegitimação e diminuição das mulheres (em inglês, o termo belittle é ideal aqui: diminuir, desprezar, desmerecer).
Obrigada pela companhia de sempre e até maio,
Helene.