O Sagrado em cada um
Tereza é o primeiro nome da primeira filha mulher da minha avó, em homenagem à Santa a qual ela é devota desde um episódio que aconteceu há quase oito décadas, em Hasbaya, no sul do Líbano. Quando minha vó, hoje com 93 anos, era uma jovenzinha adolescente, um acidente doméstico com água fervendo fez com que ela queimasse grande parte do rosto. Na época, sua família não deixava ela se olhar no espelho, tamanha a seriedade da queimadura, e seu pai fez uma promessa de que, se o rosto de sua primogênita ficasse livre de marcas, ela então iria se vestir como Santa Terezinha todos os dias, por seis meses. Pois um longo tempo passou, a pele enfim cicatrizou, e essa foto abaixo, da minha vó aos 18 anos vestida de santa, simboliza essa fé que foi passada de uma geração para outra.
Sinto um fascínio por essa espécie de magia que envolve todos os mistérios que não podemos explicar. E, ao terminar minha leitura preferida deste ano, A Cor Púrpura, me arrepiei ao ler as últimas palavras do livro. Alice Walker, brilhante, iluminada, escreveu: “Eu agradeço a todos neste livro por terem vindo. A.W., autora e médium.”
Talvez essa presença que recebeu enquanto escrevia seja um exemplo do que Julia Cameron menciona diversas vezes n’O Caminho do Artista, de que, no momento do ato criativo, os seres humanos são como um canal pra que forças superiores se expressem criativamente através de nós. Como se artistas fossem transmissores de algo que vem de uma fonte inesgotável, muito maior.
Mas voltando a um dos diálogos que mais me emocionou em A Cor Púrpura: a protagonista Celie tem uma conversa com Shug, personagem essencial em sua história, em que refletem sobre Deus. Ao longo de sua vida, Celie havia sofrido diversos tipos de abuso e violência cometidos por homens - e passou, então, a repelir a figura masculina. Para explicar a Shug por que havia se distanciado de Deus, ela afirma ser porque ele é um homem. Como se essa palavra já bastasse, já contivesse o que precisava ser dito. Associar Deus à imagem tradicionalmente conhecida de um homem branco, de cabelos longos, muito severo e julgador, não haveria de ser mesmo positivo.
E então Shug sugere dissociar a figura de Deus de um homem, e focar em sentir sua presença na natureza, na beleza da vida. “Invoque as flores, o vento, a água, a pedra.”, diz Shug. Esse livro é maravilhoso e merece ser lido.
As pessoa acham que agradar a Deus é tudo que interessa a ele. Mas qualquer idiota no mundo pode ver que ele sempre tá é tentando agradar a gente de volta. (...) Ele tá sempre fazendo piquenas surpresa e espalhando elas em volta da gente quando a gente menos espera. [♡♡♡]
— Shug, em A Cor Púrpura (Alice Walker).
Em uma aula de seu curso Bíblia para Quem Crê ou Não Crê, o historiador Leandro Karnal analisa textos religiosos por uma perspectiva histórica, discutindo seu impacto no mundo ocidental. Por ele ser ateu, a minha impressão é a de que suas interpretações e leituras têm sempre um enfoque histórico, baseado em estudos e fatos, e não são encobertas por um véu de crenças religiosas pessoais.
Nesse vídeo, ele destrincha o Salmo 23, “O Senhor é meu pastor, nada me faltará.” A palavra em hebraico que pode ser traduzida por pastor também pode ser traduzida por companheiro de guerra, amigo, quem está ao seu lado. E, se atendo a uma tradução mais fiel à original, Karnal explica que a frase correta seria “O senhor é meu companheiro de guerra, meu amigo, meu pastor, e Ele não me faltará”. A essência da vida é que haja falta, então seria contraditório afirmar que “nada me faltará”. Mas, na versão mais próxima à original, “Ele não me faltará”, então o sentido é o de que, em todos os momentos que forem necessários, a presença de Deus não faltará a quem crê.
Esse acolhimento de saber que seu “companheiro de guerra” sempre estará ao seu lado me lembrou da fala emocionante de Celie: “Mas num é fácil tentar fazer as coisa sem Deus. Mesmo se você sabe que ele num tá lá, tentar fazer sem ele é duro.” [Reparem que a linguagem informal, com “erros gramaticais”, é usada como um recurso da autora pra expressar a origem simples e sem instrução formal de Celie, uma jovem negra e pobre nos Estados Unidos durante uma época de intensa segregação racial].
Essa presença que nunca nos falta é diferente pra cada um. Pra minha vó, é a Santa Terezinha. Pra Shug, é a beleza da natureza. Cameron diz que criações artísticas são feitas a partir de uma força divina, que há algo de sagrado em cada uma delas. Então talvez, pra você, seja o conforto e a luz que você encontra na arte, na música, na literatura. Seja como for, que em 2025 a gente reconheça a magia da vida e os momentos em que deus está presente, tentando nos agradar, como bem pontuou Shug. (Se já leram A Cor Púrpura, me contem?).
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Amo a companhia de vocês. Muito obrigada! Que o novo ano seja generoso em tudo que nos faz muito feliz.
Helene.
When I find myself in times of trouble
Mother Mary comes to me
Speaking words of wisdom
Let it be— The Beatles
Muito bom perceber os diversos olhares pra o que chamamos de fé! Faz a gente pensar nas diversas e inúmeras crenças que existem e respeitar as opções de todos!