De mãos dadas com a nossa criança
Sucrilhos com leite, alfajor da Turma da Mônica, pipoca doce colorida: “liste as comidas favoritas da sua infância”, propunha o exercício que, com uma pergunta aparentemente superficial, foi capaz de iluminar memórias que estavam há muito esquecidas. Sabores e cheiros têm esse poder de nos levar instantaneamente de volta no tempo - ou, como dizem em inglês, take us on a trip down memory lane [já conhecia essa expressão? Ela se refere a uma viagem ao passado, a acessar lembranças antigas com carinho e nostalgia].
Juro que tentei não escrever sobre O Caminho do Artista de novo, mas como essa newsletter é um reflexo direto da minha vida no momento, não consegui escapar. Além das páginas matinais e do encontro com o artista, que mencionei na edição anterior (só clicar aqui caso você tenha perdido), a cada semana tem tarefas a serem feitas. E algumas delas te impulsionam a pensar na sua versão do passado - em você quando criança, mais especificamente. Como uma forma de retomar a conexão com a nossa criança interior, já que, de acordo com a autora (e com muitos artistas que afirmam o mesmo), é ela que abriga nossa essência criativa.
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande.
― Manoel de Barros
Talvez seja fácil reconhecer que ainda temos e somos muito de nossas versões crianças - agora em corpos mais velhos, com muito mais experiência, talvez menos disposição, mas com os mesmos medos (espíritos e lagartixa), as mesmas vontades (escrever no diário e passar horas no mar), e que encontra conforto e acolhimento nos mesmos lugares (vó, mãe, pai, Harry Potter). Mas parte da nossa identidade autêntica talvez tenha se apagado ao longo dos anos, muitos sonhos criativos podem ter sido interrompidos antes da hora, às vezes nos sentimos perdidos e sem saber o que realmente desejamos.
Os exercícios são um caminho para reencontrar quem éramos antes de termos aprendido a ser quem “devemos” ser. E então acessar a perspectiva do mundo e da vida pelo olhar mágico da infância. Pensar que tudo é possível. Acreditar que tudo é possível - ainda não ter vivido nada que provasse o contrário. Imaginar o futuro. Não entender muito bem o conceito de futuro. Um mês, um ano, ideias muito abstratas. Então, como consequência, nem se preocupar com isso. Encher as horas dos dias com escola e estudo, mas principalmente com diversão. Essa é a palavra que rege tudo nesse período.
Brincar, correr até perder o folêgo, girar, girar, girar até ficar tonta, justamente pra sentir algo diferente, intenso. Tudo é novo e fresco. A cada ano, a cada férias de verão, mudanças esquisitas e gigantes. E aprendizados. Rir até a barriga doer. Correr na grama molhada até cair e quebrar o braço. Inventar poções mágicas com plantas e flores esmagadas, na latinha cor-de-rosa da Minnie. Tentar passar a noite em claro conversando com as amigas durante as dormidas, mas eventualmente todas pegarmos no sono. Trocar segredos. Escrever no diário esses segredos. Querer soltar a mão dos pais e ficar um pouquinho atrás deles, pra parecer andar sozinha - querer a todo custo ser independente, sem fazer ideia do que isso significa.
Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar.
― Adília Lopes
Preencher os dias com mais leveza, sem pensar tanto no tempo - talvez a sabedoria de pensar no futuro como um conceito abstrato pode nos servir bem. Talvez isso nos ajude a deixar de tentar controlar tudo, de querer prever os próximos passos, os próximos meses e até anos. Confiar que a vida tem um caminho natural a ser seguido, e focar mais no hoje do que no que tá longe e distante.
Às vezes, também, sermos um pouco mãe de nós mesmas. Cuidar bem da nossa criança. Quero ficar acordada até tarde!, ela insiste. Ser nossa própria mãe e responder: se você dormir mais cedo, vai conseguir aproveitar muito mais amanhã. E então obedecer o conselho do adulto que realmente deseja o melhor pra nós. E, também como uma boa mãe, mimar nossa criança - porque ela merece, sim!
Ter a diversão como principal critério para as atividades escolhidas. Que delícia. A gente cresce e tudo parece ganhar um peso que dá às coisas uma seriedade inútil. Mas já trabalhamos bastante, já temos muitas responsabilidades, obrigações, boletos. No nosso tempo livre às vezes precisamos apenas nos divertir. Priorizar momentos no dia para isso, como a TV Cruj depois de um dia de escola e de tarefas. A recompensa simples e feliz. E, por fim, buscar deixar a nossa criança orgulhosa. Honrar os desejos que ela imaginou pra nossa vida de gente grande. Sabe aquele sonho de ser adulta e passar uma noite sozinha num hotel incrível, pedir pizza e champagne no quarto, e assistir a seu filme preferido num robe de seda? Se permitir viver experiências assim.
What did you do as a child that made the hours pass like minutes? Herein lies the key to your earthly pursuits.
(O que você fazia quando criança que as horas passavam como se fossem minutos? É aí que está a chave para a sua vida.)
― Carl Jung
Obrigada pela companhia de sempre e até outubro,
Helene.
Que lindoo! Viajei aqui com vc! Muito bom passear pelo passado! Amei! 💗💗💗