Palavras, línguas & linguagens ♡
No auge dos meus 12 anos, precisei ler um texto em voz alta em um evento cheio de adultos sérios e atentos. Me lembro vividamente que a palavra “sutil” apareceu e eu, que ainda não a conhecia, pronunciei “sútil”. Em seguida, alguém me corrigiu sutilmente (hehe), gentilmente até, mas isso não impediu que eu ficasse mortificada de vergonha. Mas gosto dessa história porque me recorda de um momento exato em que aprendi uma nova palavra em português – quando se trata da nossa língua materna, raramente temos lembrança do momento em que nossa compreensão de cada palavra passou a se formar.
Também é curioso que, quando ainda não sabemos o significado de uma palavra, ela nos parece desprendida da realidade, sem nenhuma carga positiva ou negativa associada a ela. Pois se eu digo: café, bolo, cafuné, lar, estou certa de que essas palavras despertam em você um sentimento caloroso, aconchegamente, feliz. Agora se eu disser: cinza, remédio, parede, indústria, essas são carregadas de um vazio, de uma frieza incômoda. Então, quando ainda não conhecemos uma palavra – como sutil, para mim, naquele dia – elas são neutras, indiferentes. Quando passamos a aprender vocabulário novo, a construir referências, elas se enchem de sentimento, passam a carregar a ideia que transmitem.
“What's in a name? That which we call a rose / By any other name would smell as sweet” (O que há em um nome? Aquilo a que chamamos rosa, com qualquer outro nome, teria o mesmo perfume), escreveu Shakespeare em Romeu e Julieta. Sim, um bolo, por qualquer outro nome, ainda seria uma massa doce, assada e deliciosa. Mas, se se chamasse, por exemplo, “caqui”, não nos sugeriria algo tão fofo, saboroso e macio como “bolo”. Tenho a impressão de que algumas palavras se encaixam perfeitamente com aquilo que nomeiam – inclusive nomes próprios, já repararam? Minha irmã, Bárbara, por exemplo: um nome forte, duro, aberto, e que de fato remete também a uma mulher corajosa, brava, determinada. Já minha prima Thamine também é exatamente o que o nome dela parece demonstrar: doce, excêntrica, forte.
Palavras! Meras palavras! Quão terríveis eram! Tão claras, vívidas, e cruéis! Não se podia escapar delas. E, no entanto, que magia sutil continham! Pareciam capazes de dar forma plástica às coisas amorfas, e de ter uma música própria, tão doce quanto a da viola ou do alaúde. Meras palavras! Haveria algo tão real quanto as palavras?1
― Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray
Numa oficina de escrita da qual participei no fim de 2023, a escritora Noemi Jaffe falou sobre a importância de inflarmos as palavras de sentido, conferirmos uma carga fresca a termos que foram esvaziados, banalizados. Ela propôs o exercício: como você diria “eu te amo” sem usar essas três palavras? Em seguida, compartilhou o poema Seu Nome, de Fabrício Corsaletti, que faz isso de forma brilhante:
(...) quando fico bêbado falo muito o seu nome
quando estou sóbrio me controlo para não falar demais o seu nome
é difícil falar de você sem mencionar o seu nome
uma vez sonhei que tudo no mundo tinha o seu nome (...)
Aqui o Gregório Duvivier recitando o poema completo:
Já a expressão “I love you” parece ainda mais esvaziada de sentido do que “eu te amo”. Em português, ela carrega um peso, uma seriedade, um comprometimento que faltam na versão em inglês. Ao remover o sujeito “I” e dizer apenas “love you”, se torna ainda mais informal, menos íntima, e é usada quase como um “beijo, tchau” ao encerrar uma ligação: “bye, love you”. Numa cena da última temporada de White Lotus, quando Rick Hatchett viaja para Bangkok e deixa sua namorada Chelsea sozinha no resort, o que ela diz para ele em uma ligação de telefone enfatiza essa diferença: “Say “I love you”, not just “love you” (diga “eu te amo”, não só “te amo”).
Se me deixarem, poderia ficar horas comparando termos nesses dois idiomas, mas vou me ater a só um aqui. Provavelmente você já sentiu na pele como a expressão “broken heart”, “coração partido”, é verossímil: há momentos em que sentimos como se nosso coração de fato estivesse quebrado em pedaços, estilhaçado dentro de nós. Mas verbalizar isso, dizer “estou com o coração partido”, é algo que não fazemos na vida real, né? Essa expressão aparece às vezes na literatura, na arte, mas nunca na nossa fala habitual, em conversas com amigos. Já “broken heart” é comumente usado em inglês; não carrega uma carga tão melodramática, e até meio cafona, de “coração partido”.
O aprendizado da nossa língua materna se dá em contextos cheios de significado, de vivências, de emoções. Enquanto de um segundo idioma normalmente acontece de uma maneira mais racional, mais treinada, dentro de ambientes específicos e controlados. É por isso que temos um distanciamento emocional quando nos comunicamos em outra língua. Dar notícias ruins para alguém, uma demissão, por exemplo, é muito mais fácil para nós se não for feito em português. Palavras ou expressões ofensivas não nos causam tanto desconforto se as ouvimos em outro idioma. A frase de Nelson Mandela sintetiza tudo isso de uma forma brilhante: “If you talk to a man in a language he understands, that goes to his head. If you talk to him in his language, that goes to his heart” (Se você fala com um homem em uma língua que ele entende, isso vai para a cabeça dele. Se você fala na língua dele, isso vai para o coração).
E também é importante lembrarmos que a comunicação sempre transcende a palavra. Entender que tudo comunica é uma arma poderosa. Políticos, por exemplo, exploram isso estrategicamente: não é só o discurso pronunciado que é levado em consideração, mas o tom e a firmeza da voz, a confiança na postura, a intencionalidade das roupas. É por isso que, para quem está aprendendo inglês, assistir a um filme é muito mais fácil do que escutar um podcast – no caso do filme, você tem o suporte da imagem, dos gestos, do contexto da cena.
Escrever essa newsletter foi basicamente estruturar em um texto pensamentos que permeiam a minha mente o dia todo. Vivo sempre pensando nas palavras, nas línguas e nas linguagens – não só por serem a matéria-prima do meu trabalho, mas também minha paixão. Virginia Woolf disse: “Language is wine upon the lips”. A linguagem é vinho sobre os lábios – uma delícia. ♡
Obrigada pela companhia de sempre e até junho,
Helene.
“Words! Mere words! How terrible they were! How clear, and vivid, and cruel! One could not escape from them. And yet what a subtle magic there was in them! They seemed to be able to give a plastic form to formless things, and to have a music of their own as sweet as that of viol or of lute. Mere words! Was there anything so real as words?”
― Oscar Wilde, The Picture of Dorian Gray
Muito bom, também me pego pensando muito nisso!
Indico um livro muito interessante sobre o tema: O Neoliberalês, que aborda como o vocabulário neoliberal molda nossa forma de pensar. O livro também usa 1984 como um objeto de análise. É bem bom!
Super interessante, não tinha observado desse ângulo! Amei! 👏🏻👏🏻👏🏻